sábado, 14 de dezembro de 2013

Tintas e sangue.



Quisera ter um coração comum enquanto ele insistisse em bater, mas era menino escrevedor, era poeta. Carregava no peito um coração sempre capaz de amar, outra e outra vez, em uma fonte inesgotável que escorria pelas veias até encontrar o papel. Já não sabia mais se tinta ou sangue, nem sabia mais diferenciar.
Quisera desfazer os não ditos, corrigir as palavras e fazer pra ele um amor desses comuns, com beijos de bom dia e sorrisos francos, mãos dadas, chocolate quente, pipoca, pés com pés.
Mas ainda gastava o tempo escrevendo sobre o que não sabia explicar, a ponto de manchar toda a folha de papel, com as mãos e as penas. Tinta e sangue.
Queria ser José, senhor de meia idade, apaixonado por Aurora, sua mulher da vida toda. Queria ser João que reclamava o café frio, mas mantinha o coração quente quando se virava para o outro lado da cama e enfim encontrava aconchego.
Mas ele não era João nem José, ele era o menino de todas as palavras e sentimentos e por isso se atormentava entre o choro contido e as letras de canções que nunca cantou, escreveu, musicou, mas não cantou. Teve medo de abrir o peito e deixar jorrar aquele mar de lágrimas, de tinta, de sangue.
Poderia ser mais sereno, mas preferiu escrever sobre coisas, coisas e pessoas, pessoas e seus sentimentos. Até que se tornou ele aquilo que melhor sabia fazer e deixou de ser o que melhor sabia ser.
Quem dera fossem só as horas no relógio que andassem se confundindo, quem dera fosse só o tempo. Mas era ele mesmo bagunçado. O menino de todas as palavras não sabia o que falar quando cruzava a sala e olhava olhos certeiros. Não sabia como se comportar, como lidar.
Sorriu aquele sorriso maldito outra vez, e contendo, contendo aquilo que não poderia carregar.
Era outra tarde de domingo, eu me lembro. O coração ainda pulsava no peito, e eram tantas folhas de papel pelo chão, escritas a sangue e tinta. Como se fosse maldição, como se ainda fosse capaz de trazer a redenção.

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