Quisera ter um coração
comum enquanto ele insistisse em bater, mas era menino escrevedor,
era poeta. Carregava no peito um coração sempre capaz de amar,
outra e outra vez, em uma fonte inesgotável que escorria pelas veias
até encontrar o papel. Já não sabia mais se tinta ou sangue, nem
sabia mais diferenciar.
Quisera desfazer os
não ditos, corrigir as palavras e fazer pra ele um amor desses
comuns, com beijos de bom dia e sorrisos francos, mãos dadas,
chocolate quente, pipoca, pés com pés.
Mas ainda gastava o
tempo escrevendo sobre o que não sabia explicar, a ponto de manchar
toda a folha de papel, com as mãos e as penas. Tinta e sangue.
Queria ser José,
senhor de meia idade, apaixonado por Aurora, sua mulher da vida toda.
Queria ser João que reclamava o café frio, mas mantinha o coração
quente quando se virava para o outro lado da cama e enfim encontrava
aconchego.
Mas ele não era João
nem José, ele era o menino de todas as palavras e sentimentos e por
isso se atormentava entre o choro contido e as letras de canções
que nunca cantou, escreveu, musicou, mas não cantou. Teve medo de
abrir o peito e deixar jorrar aquele mar de lágrimas, de tinta, de
sangue.
Poderia ser mais
sereno, mas preferiu escrever sobre coisas, coisas e pessoas, pessoas
e seus sentimentos. Até que se tornou ele aquilo que melhor sabia
fazer e deixou de ser o que melhor sabia ser.
Quem dera fossem só as
horas no relógio que andassem se confundindo, quem dera fosse só o
tempo. Mas era ele mesmo bagunçado. O menino de todas as palavras
não sabia o que falar quando cruzava a sala e olhava olhos
certeiros. Não sabia como se comportar, como lidar.
Sorriu aquele sorriso
maldito outra vez, e contendo, contendo aquilo que não poderia
carregar.
Era outra tarde de
domingo, eu me lembro. O coração ainda pulsava no peito, e eram
tantas folhas de papel pelo chão, escritas a sangue e tinta. Como se
fosse maldição, como se ainda fosse capaz de trazer a redenção.
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